arquivo > maio de 2016

Uma âncora para a nossa pouca sorte

Tocha 1994 / Foto JR

Os nossos barcos já só servem, e pouco, para uma pesca de sobrevivência crescentemente reprimida. Já não há comboios especiais de emigrantes provenientes de Paris, nem no Natal. Tampouco acreditamos na bondade de fazer vingar a "revolução moral" a que aludiu Barack Obama quando, em visita a Hiroshima como Presidente dos Estados Unidos, homenageou as vítimas da guerra. Não será inédito vermos falhar  a construção de um "homem novo". Temos de viajar para além de nós, como cantou Luís Veiga Leitão ao fugir da cela a pedalar na bicicleta que outro preso desenhara na parede.  Além de escassearem, no jornalismo, âncoras a que nos possamos agarrar, como às vezes ainda fazemos, pelo menos às sextas-feiras, pelas nove da noite.

Escolher, em Liberdade, o éle do lucro

Uma questão de escolha em Liberdade / JR 2016

Uma das vantagens da Liberdade é a de podermos pedir o que quisermos. Podemos reclamar subsídios que nos garantam o que julgamos ser certos privilégios - como estudar numa escola privada paga pelo Estado - e podemos fazê-lo até em manifestações de rua bem identificadas pela cor dominante das vestes dos manifestantes, por exemplo o amarelo. Podemos fazer isto tudo, mas temos de aceitar que o Governo, em nome do Estado, obrigado a manter e alargar a Escola Pública a toda a população mesmo podendo, em situações justificáveis pela inexistência de oferta pública, remeter alunos para instituições privadas de ensino, tente superar esta contrariedade.

Facebook, com éfe de Futebol e Fado

Gosto / JR 2016

Facebook escreve-se com éfe de Futebol e de Fado. O mesmo éfe com que se escreve fome, fama e Fátima. Éfe de favorecimento, de facilidade, de felicidade ou de frequência. Aquele mesmo éfe do "éfe éme estéreo", ou seja da frequência modelada em estereofonia, uma melhoria nas emissões de rádio, regularmente apregoada na própria rádio com um pregão que aos ouvidos de um grande amigo meu soou, durante anos, com um incompreensível "éfe é mistério", em vez do "éfe éme estéreo". É preciso saber ouvir. Confusões destas há muitas. Ainda há dias, alguém me perguntou a razão pela qual a RTP voltou a dizer que "Angola é nossa", confundindo o pregão que anuncia a exclusividade das transmissões de Futebol do Campeonato da Europa - "A bola é nossa".

Os peixes também pensam e sentem

Peixe que pensa e sente JR

Jonathan Balcombe assina hoje no International New York Times um artigo de opinião onde diz que os peixes pensam e sentem. Refere uma experiência com mantas gigantes que mostrou que elas são capazes de se reconhecerem num espelho. Pensar que os peixes também podem sentir e pensar é uma ideia boa mas também estranha e até potencialmente perturbadora especialmente para todos aqueles, entre os quais me incluo, que comem peixe. Espero nunca ter comido um desses peixes que tem a capacidade de se olhar a um espelho com alguma vaidade. 

Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões

Porto de Leixões 2016

Escolhi o Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões como minha residência artística para o próximo Verão. É um espaço muito agradável, desenhado pelo arquitecto Luís Pedro Silva, que convida a rascunhar prosas e versos e aguarelar desenhos a lápis. Até estranho que o décimo encontro do LeV (Literatura em Viagem)  não tenha escolhido zarpar daquela excelente estação de passageiros para as viagens que programou. Sentados no cais a olhar o mar flutuamos sobre as águas como um barco voador (hovercraft) e até podemos mergulhar fundo como num submarino em vidro imune à pressão das águas nas profundezas dos oceanos.

O arriar da bandeira no Palácio do Planalto

Brasília, Palácio do Planalto / Foto JR

Para mim, que deixei de ser jornalista há muito e sou tentado a reconhecer razão a Umberto Eco quando acusa a Imprensa actual de preferir ocultar a revelar notícias, o importante é perceber a razão pela qual o vice da Presidente do Brasil Dilma Rousseff aceita substituí-la, negando-lhe, qual Marcus Junius Brutus, apoio ou solidariedade no processo pouco claro que conduziu à destituição da presidente pelo Senado. Ou perceber a razão pela qual há jornais que aceitam titular notícias deste caso com expressões do género "Tchau querida, já foste".

Maioria nem sempre garante Justiça

A noite abate-se sobre Brasília / JR 2016

A votação ilegítima da destituição da presidente Dilma - ilegítima por não estarem reunidas as condições para poder ser votada, ou seja, por não haver crime imputado à presidente que justifique esse processo - mostra à evidência que uma maioria nem sempre tem razão ou traduz Justiça. Esta maioria, onde pontificam muitos políticos suspeitos de crimes de corrupção, une-se para destituir uma Presidente eleita por sufrágio universal e promover um vice-presidente, que chegou ao cargo encostado à Presidente mas não tem a hombridade de a acompanhar na hora em que ela é vítima de um verdadeiro golpe de estado palaciano. Em nome de um formalismo democrático mortalmente distorcido.

Ladrão confesso de pinturas e outras artes

Nau ancorada no tempo (pormenor) JR 2016

Tivesse eu ocasião e bem que roubaria aquele óleo sobre tela de Jorge Pinheiro, um metro e trinta por um metro e sessenta e dois a que o artista deu o nome de Tempus Fugit. Esta pintura está reproduzida no livro "Oferenda" -  poemas (ecfrásticos?) de João Miguel Fernandes Jorge a lerem obras de Jorge Pinheiro -, edição da Modo de Ler" com a marca inconfundível do editor José da Cruz Santos. Meu sonho de ser ladrão de arte teria mais hipóteses de se concretizar se o objecto do desejo fosse uma tela de Jorge Pinheiro, uma das que retratam o Poder, ou parecem, a meus olhos, retratar o Poder

Um colibri em Movimento Perpétuo

Colibri da América do Sul a voar para Norte / JR 2016

Há dias em que não faço as coisas por menos - pinto como Jorge Pinheiro, toco guitarra portuguesa como Carlos Paredes tocava o Movimento Perpétuo, voo como um colibri, sou capaz de mergulhar no mar o tempo e a profundidade que eu quiser,  escrevo como Raymond Chandler e como outros que agora aqui não quero referir, produzo dos melhores vinhos de mesa e dos melhores vinhos do Porto que há no Mundo, sou orizicultor no Baixo Mondego e ainda colecciono recortes de jornais e outras coisas mais. Há dias em que não faço as coisas por menos.

Gosto e contragosto pelas autonomias

Pozinhos Dior, meados do século XX / Foto JR

As autonomias física e mental de alguém nunca são absolutas. Admito que seja difícil reconhecer isto quando a idade é já avançada e se tem a sorte de estar fisica e mentalmente bem e muito acima da média das pessoas com a mesma idade.  Num cenário destes que todos parecem invejar, a tentação da ilusão da autossuficiência sem limites pode gerar conflitos muito difíceis de superar para quem assume, voluntariamente, a ingrata tarefa de prestar os apoios necessários para que os graus de autonomia existentes possam ser fruídos adequadamente, apoios que tantas vezes esbarram  no contragosto de quem os recebe. Por julgarem que lhes diminui a autonomia.

Água da Terra, negócio da China

nó / JR 2016

Faz tempos, em plena fase participativa da jovem Democracia Portuguesa, quando, no término de uma concessão comercial inicial de 99 anos sobre uma fonte de água mineral, certa autarquia tentou, em vão, reaver as águas dessa fonte, eu, então jornalista, titulei a notícia com uma ironia banal - A água é da terra, o negócio é da China. Agora, talvez tivesse de abrir a boca de espanto ao confirmar a titularidade do negócio e tivesse de engolir essa água - que entretanto deixou de ser transparente, incolor, inodora e insípida - com a cor, o cheiro e o sabor das mais recentes variantes. Da água e do jornalismo.

Um relógio d'água aprisionado

banco em madeira de choupo e sombra / JR 2016

É bem verdade que os grandes e melhores perfumes vendem-se em frascos pequenos. Ninguém chega a uma perfumaria de referência e pede para aviar um garrafão de cinco litros de Chanel nº 5. Por analogia, um pequeno poema dentro de um pequeno frasco - aquilo a que chamam de livro objecto - talvez ganhe outra fragrância assim apresentado. Um dia destes, vou pedir que metam em frascos pequenos, mais parecidos com frascos de tinta para canetas de tinta permanente do que com frascos de perfume - o meu poema "CLEPSIDRA, meu amor". Como quem aprisiona um relógio d'água do passado em redondilhas maiores e menores.

Há tantas Sépias Azuis quantas queiramos

1977, o ano do nascimento das sépias azuis / JR 2016

Pouca gente sabe e pouca gente acredita, mas há sépias azuis. Parece uma imposibilidade cromática, mas pode, por exemplo, ser o título de um folheto de memórias para as faunas que gostam de começar a noite a conversar ou até para um falso catálogo de uma exposição imaginária de pintura. Sépia Azul era uma expressão irónica de um velho tipógrafo que a usava para designar uma monocromia em tons de azul. Para quem, como eu, ousa, atrevidamente, aventurar-se pelas artes plásticas mas não perde um certo pudor, escrever e publicar um catálogo de uma exposição de pintura que jamais se realizará pode ser uma alternativa. É sempre um bom pretexto para outro texto. 

Pira Pora Tira, Senhora de Aparecida

Nem desenhar, nem rezar / JR 2016 sobre um desenho de Picasso

"Sabem daquelas amoras // que adoçam a minha boca ? // Selvagens, silvestres?"  Escrevi isto agora talvez por ter acordado com aquela moda caipira de Renato Teixeira, sucedânea de prece para quem não sabe rezar. Às vezes acontecem-me coisas assim - entrar, por acaso, num lugar e sair com "11 poemas" da Sophia, "Uma Rosa no Tempo" do Cochofel e uma edição especial, fora de mercado, do "Ostinato Rigore", do Eugénio. Entre outros "Olhar em redor".  É um modo de estar, como há modos de ler e até de escrever. A "pedir de romaria e prece Paz nos desaventos"

Vermelho musseque, cor da areia de Luanda

Aqua memoria, aguarela JR 2010

Há seis anos, em Luanda, deixei-me envolver pelas cores da cidade e da baía, e pelas saudades de uma cidade desconhecida, inventando um vermelho musseque como sendo a cor da areia da praia de São Paulo de Luuanda, assim escrita Luuanda, como no título do conto de Luandino Vieira. Acrescentei-lhe "meu primeiro amor" como terceiro verso de um haicai - Vermelho musseque // cor da areia de Luuanda // meu primeiro amor. Mais tarde, estive quase a desviar estes três versos para um trabalho encomendado mas, felizmente, o cliente estava pouco virado para a poesia. Tampouco lhe interessava o que aguarelei nessa mesma viagem, olhando o Palácio do Governo de Luanda, da janela do meu quarto, no Skyna Hotel. Reler e rever é regressar.

Escolhendo os imortais de cada um

vinte imortais (pormenor) aguarela JR 2016

Eleger os meus imortais, 40 como na Academia Francesa, só não é tarefa fácil por não ser fácil escolher 40 pessoas a quem queiramos realmente atribuir essa categoria de imortais. Se vier a criar uma Academia assim, quero que ela seja secreta e que os estatutos a aprovar me confirmem como a pessoa  que pode nomear ou "desnomear" imortais, um título para toda a vida, susceptível de ser revogado em situações extremas, como aliás também acontece na Academia Francesa. As primeiras escolhas são óbvias - o meu primeiro imortal, primeiro ocupante da primeira cadeira, entretanto vaga, é o meu pai. O problema não está nas primeiras escolhas, está sempre nas outras.