arquivo > abril de 2013

Postal para João Rita

vermelhamente, Júlio Roldão

Houve um ano em que eu e o Marco, então um fotógrafo de referência a trabalhar para o Jornal de Notícias, cobrimos o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) endereçando diariamente postais a figuras públicas, da política e da cultura. A imagem do postal era uma fotografia que o Marco captava no espectáculo que elegíamos para o postal do dia, o título era sempre postal para fulano, sendo fulano alguém conhecido, e o texto, escrito em função do destinatário, com recados políticos e referências aos espectáculos, Terminava sempre com um advérbio nada inocente, tipo amavelmente, venenosamente, atrevidamente... Este mini modelo jornalístico foi um sucesso e já o impingi a um amigo meu, jornalista estrangeiro, que já foi correspondente em Lisboa e que regressou ao nosso país para gozar, sem deixar de escrever, os dias de uma reforma forçada.

6,50 AM em Beverly Hills

desfolhada

Quando são 6,50 AM em Beverly Hills, código postal 90210, o mágico número de uma série televisiva de culto, as mulheres e homens das limpezas desta cidade californiana ainda não podem regressar às respectivas casas, que também terão de cuidar, ao contrário dos seus colegas de Lisboa, de Londres e de Casablanca, onde já são 14,50, ou seja, dez para as três da tarde, hora a que muitos deles já se fartaram de labutar pelo pão que o diabo amassou. 6,50 AM é a hora que o corpo não aguenta, o corpo dos que estão cansados da noite e vão deitar-se e o corpo dos que ainda não descansaram o suficiente mas têm de levantar-se.

Saudades dos nossos nenhures

Lago de Brasília

Cheguei a pensar numa tiragem especial em bronze para o poema, "o meu mundo" que integra "Sépia Azul I", de 2011, outra tiragem espccial mas em papel - De alguns locais que nunca visitei // e que nem sei nomear // eu tenho mil saudades de voltar. O poema tem ainda uma segunda estrofe, de dois versos, o que o torna enorme para uma tiragem especial. Este poema - devo recordá-lo - nasceu na sequência de uma pergunta que a minha mãe, já nonagenária, me formulou em vésperas de uma viagem minha ao Brasil. Perguntou-se se seria possível ter saudades de uma cidade onde nunca se esteve, revelando que sempre teve saudades do Brasil onde nunca se deslocou, como sempre quis.

Tiragem especial (poesia)

Casa Forte, Culturgest, Porto

A poesia, condenada há séculos a vir a público em edições de pequenas tiragens, continua a mobilizar o interesse e a vontade dos que se dizem e assumem como poetas. Esta inevitável raridade pode ser levada ao extremo de uma tiragem especial, para um poema também especial, que possa ser reproduzido numa folha de bronze, até um máximo de seis exemplares, para poderem ser consideradas peças de escultura únicas. A folha começará por ser moldada em barro branco, a partir do qual se fará um negativo em gesso que servirá de molde à fundição final do bronze. Seis exemplares, a raridade de uma edição de tiragem especial. Em bronze, para destinatários especiais e um ou outro coleccionador

Título perdido na última frase

Engenho. Ilha do Sal, Cabo Verde

Apanho um jornal de domingo na madrugada do dia, na escala em Lisboa. Por coincidência um dos temas de capa é sobre a música cabo-verdiana. Apesar de cansado, procuro o texto que leio de imediato. Na última frase, a jornalista cita o ministro cabo-verdiano da Cultura, Mário Lúcio, que diz que "ninguém vive a vida toda numa ilha, nem Robinson Crusoe". Recorto o parágrafo, para o colar no meu caderno da viagem, onde registo que a jornalista desaproveitou, nessa citação ministerial, um grande título - Ninguém vive a vida toda numa ilha.  

Reportagem de mil linhas

máscara. Santa Maria, Sal

Relendo a "reportagem de mil linhas" com que há 23 anos transmiti aos leitores do JN o que vi, ouvi, cheirei, toquei e provei em Cabo Verde, faço uma pausa para sublinhar que ainda não é desta vez que poderei ver,  com um olhar mais sereno, a Cidade Velha de Santiago, lugar que a UNESCO elevou, há quatro anos, à categoria, justíssima, de Património da Humanidade. Quero voltar a querer escrever mil linhas de uma narrativa qualquer, jornalística ou não jornalística, e Cabo Verde é lugar apropriado para o renascimento dessa vontade. Volto a registar a opinião de C.L. quando ela diz que o arquipélago é ponto de cruzamento de paixões e outros afectos, ingredientes insubstituíveis de qualquer criação literária.

O melhor cliente é o mais exigente

Sal, propriamente dito, Ilha do Sal

Num hotel de cinco estrelas, o melhor cliente é o cliente mais difícil e exigente, diz-me C.L. futura directora de um futuro hotel de luxo da ilha. O projecto tem meios de financiamento mais do que suficientes para garantir os primeiros anos de funcionamento do hotel, enfrentando como principal problema a formação profissional dos funcionários a contratar. A um hotel de cinco estrelas não basta que os quartos tenham áreas generosas, que o foyer tenha espaço suficiente e condições para receber todos os hóspedes ao mesmo tempo e que haja um pianista residente. É preciso que o serviço seja realmente adequado ao número de estrelas que se ostenta e isto é que é, realmente, difícil.

Muita água salgada, pouca água doce

Réplica à escala de um Ilan Voyager (Hall do Hotel Morabeza)

Se voltar à Ilha do Sal, quero voltar ao Hotel Morabeza, um quatro estrelas de charme, o mais antigo da ilha lhana, onde almocei em 1990 quando fiz escala na ilha de regresso a Portugal após dez dias de visita a três outras ilhas do arquipélago - S. Vicente, Santiago e Maio. O Hotel oferece a possibilidade de uma viagem à ilha da Boavista num trimaran com capacidade para 8 passageiros, um Ilan Voyager, que, só por si, é uma verdadeira atracção. Será, seguramente, um dia bem passado. Afinal, Cabo Verde não é só um lugar onde há muita água salgada e pouca água doce.

Flashback a caminho do Sal

Monte Leão no horizonte, Ilha do Sal, Cabo Verde

Recorto, para posterior colagem, um destaque da revista que a nossa companhia aérea de bandeira (TAP, prestes a ser privatizada) oferece para leitura dos passageiros - "Lisboa surpreendeu-me pelo seu tradicionalismo e por, ao mesmo tempo, ser muito virada para a modernidades. Admiro a arquitetura colonial portuguesa em todo o mundo". Não sei quem é este admirador de Lisboa, mas gosto do comentário. Eu também gosto muito da luminosa cidade de  Lisboa, capital de um Império que já não existe. E gosto de partir de Lisboa em direcção a África low profile como Cabo Verde. Não necessariamente em todas as ilhas, mas seguramente na Ilha do Sal, de momento a mais turística do arquipélago.

Nesta aventura inacabada

Ensaio do Woyzeck no TEUC em O Século Ilustrado de 13 de Maio de 1972

Quase tudo, ou mesmo tudo, é, como o drama teatral de George Buchner "Woyzeck", um texto inacabado. Tão importante como ser a primeira peça de teatro da cultura europeia que concede a um proletário (no caso alguém sem grandes capacidades profissionais na vida civil que  se oferece para ser soldado) o principal papel, o Woyzeck ganha outra dimensão por ser tida como uma obra inacabada com toda a generosidade que isso encerra, pelo menos relativamentre a quem pretende pô-la em cena. Desafiado a testemunhar à roda da minha passagem pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), que este ano celebra 75 anos de existência e onde, nos idos de 1972, representei o papel de Woyzeck na encenação de Júlio Castronuovo, regressei aos meus 18 anos e a todas as incertezas que então, como hoje e como sempre, tinha e tenho. Nesta aventura inacabada.

O Problema da Habitação

Foz do Douro, Porto

"O Problema da Habitação" pode ser e é um livro de poemas. Um livro de poemas de Ruy Belo que foi editado em 1962 e reeditado agora, em Fevereiro de 2013, mais de meio século depois. Para Fernando Pinto do Amaral, que escreve o prefácio desta reedição, esses sete poemas longos e três breves representam, cito, "um dos momentos mais coerentes e mais densos da obra de Ruy Belo". Tal como refere Belo relativamente a uma folha, no poema inicial, também eu me acolho à poesia "como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá". Sempre gostei, pela sonoridade ao pronunciar o nome dela, da flor do jacarandá. 

Anticonstituicionalissimamente falando

Castro Verde, Alentejo, Portugal

Os políticos, portugueses ou estrangeiros, que proclamam o suposto erro do Tribunal Constitucional português  em chumbar artigos do Orçamento de Estado de Portugal para 2013 por atentarem contra a Constituição do país, estão, na verdade, a admitir que o respeito pela Constituição não carece de ser assumido na totalidade, pelo menos  em determinadas situações, muito particulares, que eles identificam. Por outras palavras, esses políticos, se pudessem, imporiam as normas do OE que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais. Os portugueses em Portugal, os estrangeiros nos respectivos países. Preocupante, muito preocupante. Hoje é o Orçamento. Que será amanha?

Lee Halpin morreu pela profissão

Desenho inacabado RR

Li, no Público de hoje, a notícia da morte de Lee Halpin, um jovem candidato a jornalista, de 26 anos (a idade do meu terceiro filho), que iniciara, há dias, uma experiência como sem-abrigo para melhor poder realizar um documentário, que ele gostaria de ver passar no Channel 4,  sobre essa realidade que estará, nas palavras dele,  a "tornar-se política, social e culturalmente relevante no Reino Unido". Lee apareceu morto numa rua de Newcastle, no Nordeste da Inglaterra, onde vivia e onde, três dias antes, tinha iniciado a reportagem que tanto o entusiasmou e que poderia ter servido de passaporte para uma entrada em força na profissão. A polícia não descarta a possibilidade do jovem ter morrido por hipotermia, embora o que é já certo, e merece a minha modesta homenagem, é que Lee morreu pela profissão.

"Rabelados" e "Claridosos"

Uma imensa profundidade de campo

Quando, há 23 anos, estive em Cabo Verde, deixei por visitar a Cidade Velha (Ilha de Santiago) e lugares marcados por comunidades religiosas marcantes no arquipélago, como comunidades animistas e, em, especial. uma comunidade denominado dos “Rabelados”, gente que se rebelou em defesa de ritos católicos que a hierarquia da Igreja quis alterar. Sempre "olhei" para os desconhecidos "Rabelados" colocando-os num patamar idêntico ao dos intelectuais ligados à Revista Literária Claridade, pelo menos no que respeita ao espírito de independência que marca o coração e a alma dos cabo-verdianos, um povo fadado a andar pelo seu próprio pé e a pensar pela sua própria cabeça, na feliz expressão de Cabral, cabo-verdiano pelo coração e pela nacionalidade do pai.

A diversidade das fontes de informação

Castro Laboreiro 2013

Sem a responsabilidade cientifica de Francesca Perucci, que há 23 anos estava no inicio de uma carreira num departamento de estatística da ONU, os meus retratos de Cabo Verde beberam, em 1990,  em fontes muito informais. Na Ilha do Maio, onde passei um fim-de-semana inesquecível que incluiu um Domingo na Praia do Pau Seco, com um concurso de dança em pleno areal, foi o padre católico António Botelho, português que viveu muitos anos no Maio, quem me disse que nos primeiros cinco meses desse ano tinham nascido na ilha 19 crianças e morrido cinco pessoas todas elas de idade superior a 72 anos. Gente rija, essa gente do Maio, a justificar que a ilha, de 4000 habitantes, tivesse apenas um médico residente e não os 25 que estatisticamente deveriam residir em função da população existente. Estou certo que hoje, até Francesca Perucci com as responsabilidades que entretanto assumiu na ONU, aceitará como boas estas fontes informais, nomeadamente as que podem dar outro colorido aos números frios e, às vezes, pouco fiáveis, das estatísticas oficiais. E hoje, 23 anos depois, em que fontes poderei confiar?

Countdown para regressar ao Sal

Big Ben

Há 23 anos, em 1990, Francesca Perucci, actualmente a chefiar um departamento de estatísticas das Nações Unidas, desesperava, em Cabo Verde pela falta de rigor e fiabilidade dos números que procurava para traduzir estatisticamente a realidade deste jovem país. Cruzei-me fugaz e ocasionalmente com ela, presumo que na capital, a cidade da Praia, na Ilha de Santiago, num encontro que refiro, de passagem, numa das crónicas da reportagem que, nesse ano, publiquei sobre o arquipélago. Francesca recolhia dados para fazer o levantamento da situação das mulheres cabo-verdianas, cuja luta pela emancipação, à data e segundo posição pública então assumida na Assembleia Nacional Popular pela deputada Joana Cabral, estava muito longe do desejável. A Economia do país, por exemplo, dependia, em grande parte, da emigração masculina, o que fazia com que recaísse sobre as mulheres o exclusivo da responsabilidade dos filhos nascidos de uma ou de mais ligações maritais. Hoje, a poucos dias de uma nova visita ao arquipélogo, que diferenças irei descobrir?

Sentença com pena suspensa

Escolha fotográfica final com pena suspensa (pormenor de um catálogo Fashion Five)

Hoje fui ao médico, por sinal uma senhora, mas estava cheio de medo do que ela me iria dizer. A minha hipocondria já tinha decretado não sei quantas sentenças de morte lenta anunciadas, embora mantivesse sob grande e íntima reserva essas (ir)racionalidades. Tenho uma viagem marcada para Cabo Verde, com bilhetes de avião e hotel já adquiridos, a cumprir na próxima semana, e desagradar-me-ia muito não a poder fazer por ordem médica. E se há viagem do meu agrado é esse programado regresso a Cabo Verde, 23 anos depois de lá ter estado. Felizmente que as piores sentenças estão a beneficiar do estatuto das penas suspensas. Enquanto tal, esta escrita clara julga-se tão clara que também contempla os medos.

Um burro assim até podia ser Presidente

Pose para postal ilustrado

Neste dia 1 de Abril, para alguns, incluindo (o que é estranho) órgãos de comunicação social, dia de petas ou mentiras, veio-me à memória a mentira em que se transformavam, antes do 25 de Abril, os ensaios de teatro para os senhoras da Censura, um exercício onde era preciso disfarçar as passagens do espectáculo mais potencialmente sensíveis aos critérios dos censores. Lembro o ensaio da peça "O Asno", de José Ruibal, que o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) representou em 1973, numa encenação de Fernando Gusmão. A dada altura, quando os americanos tentavam vender um burro electrónico, todo sofisticado, o potencial e falsamente ingénuo comprador dizia que - cito - "um burro assim até podia ser Presidentre da República". A frase, dita de forma quase imperceptível no ensaio da Censura, passou no crivo dos censores e tornou-se o ponto alto dos espectáculos com o público a aplaudi-la demoradamente no momento em que era proferida. Era uma fórmula possível, posto que perigosa, de afrontar o então Presidente da República, Américo Tomaz, militar que tinha sido eleito para o cargo em eleições fraudulentas e não democráticas. Mentiras que não eram só do dia 1 de Abril.