arquivo > novembro de 2012

Um piano numa residência literária

Piano em tela consagrada /Foto JR

Se alguma vez, como sonho, vier a desenvolver algum trabalho no âmbito de uma residência literária que me acolha e acarinhe e para a qual eu esteja disponível, irei gostar que tal experiência possa desenrolar-se num lugar onde haja um bar com um piano velho, sem cauda, sempre fechado, um piano de estudo que sirva de balcão  para pousar um copo e para, noite dentro, encostar o corpo já meio cansado, quando os olhos ficam mais pequenos a medir um desejo.  

Um bom banho num bom hotel

Hotel Puerta da America, Madrid / Foto JR

Rubem Braga, brasileiro, um dos grandes escritores da Língua Portuguesa, cronista de eleição, citou um dia, numa crónica, uma lista das boas coisas da vida elaborada por uma revista cor-de-rosa a partir das preferèncias expressas pelos respectivos leitores. Já não recordo todas, mas lembro a que refere o reencontro com certas comidas da infância e a que elege o momento em que alguém sente que um velho amor está a virar uma grande amizade ou, a par, o momento em que uma grande amizade vira, de repente, amor. Mas a coisa boa, dessa lista, em que eu também voto é a que elege um banho excelente num bom hotel, antes de vestir uma roupa confortável e de sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.

A room with a view...

Hyde Park, Londres / autor desconhecido

Há mais de 20 anos, em plena primeira guerra do Golfo, estive em Londres, enviado pelo Jornal de Notícias (onde então exercia a profissão de jornalista) e fiquei hospedado no Hotel Hyde Park. O que marcava a agenda política internacional era o thatcherismo, uma austeridade muito parecida à que agora está a ser imposta aos países da Europa do Sul. Lembro-me de conversar sobre estas questões com o jornalista Araújo Moreira, que fora enviado pelo Diário de Notícias, passeando com ele, depois do jantar, pelas imediações do hotel. Nessa viagem, confrontei-me, pela primeira vez, com a chocante realidade dos sem-abrigo das grandes cidades. Já fui a Londres mais vezes, mas Londres continua a ser uma cidade que quero voltar a visitar. Já não nos circuitos dos hotéis mais centrais e estrelados que valem sempre muito menos do que um quarto com vistas para cidade.

Problemas de interpretação brutais

Exercício de Júlio Roldão sobre Egon Schiele (Técnica mista)

Um crítico presente no festival de teatro onde vi a peça "Informe sobre ciegos" (Relatório sobre cegos) numa encenação de Sanchis Sinisterra para o texto de Ernesto Sábato, dizia, com a sabedoria incontestável dos críticos, que qualquer espectáculo baseado num monólogo de mais de uma hora coloca problemas de interpretação brutais. Seguramente desde que Gil Vicente escreveu e interpretou o “Monólogo do Vaqueiro”. Outro monólogo, não menos difícil, é o de Molly Bloom, autonomizado do final de Ulisses, de James Joyce. E os monólogos cruzados que têm marcado a nossa vida pública e política? Esses é que geram problemas brutais de interpretação.

"You must remember this..."

Uma caixa da avó / Foto Tiago Roldão

Há 70 anos, estreou um dos filmes mais marcantes do século XX - Casablanca -,  um clássico do cinema norte-americano que ajuda a imortalizar  Humphrey Bogart (Rick, no filme) e Ingrid Bergman (no papel de Ilsa), além de uma canção ainda hoje eterna -  "As time goes by" -, cujos versos mais conhecidos são, em inglês "You must remember this //  A kiss is still a kiss, a sigh is just a sigh  // The fundamental things apply  // As time goes by ". Na última cena, o avião onde Ilsa iniciará a viagem para os Estados Unidos  - um Lockheed 12 A - levanta de Casablanca rumo a Lisboa...

Olhar da margem esquerda

Coimbra na objectiva de Varela Pecurto (pormenor)

Cidades, como as do Porto, onde nasci, ou Coimbra, onde tantas vezes renasci, ganham outra dimensão quando vistas da margem esquerda dos rios que as beijam. Alguns desses olhares até são cantados - "Quem vem e atravessa o rio // Junto à Serra do Pilar", nas sentidas palavras de Carlos Tê para a voz e a música de Rui Veloso. Em Coimbra, há um hotel, num alto da margem esquerda, que não será o mais estrelado mas é um dos que oferece uma das melhores vistas sobre cidade. É um hotel que tem quartos com vistas para a cidade. Julgo que isto não acontece em cidades como Paris, onde a valorizada "rive gauche" não é valorizada pelo olhar que proporciona sobre o outro lado do Sena. Nem em Londres...

Recortes de emoções em desuso

Acrílico de Júlio Roldão (pormenor)

Ontem estive em Lisboa e fui, pela primeira vez, à Assembleia da República. Até estive sentado, como integrante da comitiva de uma associação, numa sala utilizada pela Comissão de Economia e Obras Públicas para receber pessoas e instituições interessadas e legitimadas em dar opinião sobre legislação ainda em discussão no Parlamento. Sessão rotineira que, para mim, teve um significado muito especial, não só pela imponência do próprio Palácio de S. Bento mas pela carga simbólica que ele alberga enquanto  Casa da Democracia. Emoções em desuso.

Início de uma não comunicação

Relógio da Estação de Viana / Foto JR

Havia um jornalista que chegava muito cedo à Redação, colocava o casaco nas costas da cadeira, acendia o candeeiro que projectava luz sobre a máquina de escrever, espalhava alguns papéis na secretária, vestia um segundo casaco que tinha de reserva e saía para ir assinar o ponto noutro jornal. Dificuldades de antigamente. Agora basta ligar o computador, ir ao gmail e verificar se estamos no "chat" referenciados a verde - ninguém desconfiará do nosso eventual silêncio.

O prazer de ler jornais antigos

Ponte de Barca d'Alva, 2010 / Foto JR

Reler ou ler pela primeira vez jornais que foram impressos há muito tempo é um exercício que me fascina. Descubro notícias que acabaram por desmerecer a importância inicial e notícias que se mostrariam, mais tarde, muito importantes mas não mereceram qualquer destaque, ou mereceram uma referência muito discreta, no primeiro dia. Um dia, em Havana, já lá vão 18 anos, comprei um exemplar da Gazeta que por lá se publicava com mais de cem anos. Custou-me um dólar, numa rua da capital. Ainda o guardo, esperando dar-lhe um destino que ainda desconheço

Um Rádio que é um Porsche

Rio de Janeiro, 2010 / Foto JR

Hoje fiz greve à Televisão. Uma greve selvagem por não ter sido previamente comunicada. Em vez de ligar o aparelho de televisão, num desses canais por cabo que transmitem séries em série, fui buscar um velho rádio, com Frequência Modelada (FM), Onda Média e Ondas Curtas, desenhado por F.A.Porsche, o mesmo Porsche, presumo, daqueles carros alemães que circularam e circulam nos sonhos de muita gente. Este meu Porsche está como novo, tem um som fora de série e sintonizando na frequência certa até recebe o trabalho de várias oficinas de poesia.

Este país não é para gente nova

Albufeira 2011 / Foto JR

Agora, que vou para velho, é que me deu para escrever títulos ditados, sem orgulhos experimentais e em desuso. Sobram-me poucos amigos capazes de reconhecer o quão doloroso pode ser este ofício de escrever. Às vezes, as palavras começam a falhar e os dedos tamborilam no teclado sem vontade… Voltando ao desabafo, neste Outono, direi que resta-me o contentamento pelo elogio de quem aplaude a humildade (que espero não ter) e o consolo em saber que muitos grandes escritores também foram forçados a este trabalho negro - a mim só me falta ser escritor, grande ou pequeno, mas não fantasma.

Memórias em Outono quente

Rio Tinto 2012 / Foto JR

Acabei de evocar, numa crónica que o semanário de Gondomar "A Manhã" publicará quinta-feira, dia 29 de Novembro, uma frase que li, há mais de 40 anos, numa das paredes da sala de ensaios do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) quando, nos idos de Novembro de 1971, o grupo ensaiava em instalações emprestadas, no velho edifício dos Gerais, por força do encerramento (como castigo político aplicado pelo Governo da ditadura contra os estudantes) das instalações da Associação Académica de Coimbra onde o TEUC tinha espaço próprio - "avalia-se um homem pela natureza das coisas que o aborrecem". Quarenta anos depois, representado que está o "Despertar da Primavera" e outros "Woyzecks", essa frase continua oportuna e nem os outonos quentes a envelhecem.

Das dificuldades em retirar rótulos

Colagem de Júlio Roldão / 2012

Retirar um rótulo de uma garrafa de vinho é quase tão difícil como retirar o rótulo da imagem de um ativista. O que vale é que não devemos exigir nem sequer esperar que os rótulos sejam retirados intactos. Quando os retiramos com rasganços são mais autênticos. É que há sempre alguns pedaços do rótulo que foram colados com uma força tal que é muito dificil retirá-los na totalidade e sem deixar rasto.

Passados incertos como o futuro

Paris 2012 / Foto JR

Há passados que são muito mais incertos do que o próprio futuro, supostamente incerto por Natureza. O Manuel António Pina, de quem sinto uma enorme saudade como jamais julguei sentir, apesar da estima pessoal que existia entre nós, gostava de desafiar os amigos perguntando-lhes o que é que eles, quando tinham 20 anos, pensavam de pessoas mais velhas que, nesse tempo, eram como eles agora são. Que terrível prova pessoal. Num exercício da memória como este também vemos como o passado pode ser muito incerto. E como às vezes o reinventamos aproximando-o daquilo que gostaríamos que tivesse acontecido. 

Há menos circo e há menos pão

Gondomar 2012 / Foto JR

Ultimamente, há menos circo e menos pão. Também vamos ter menos dias de descanso e, portanto, menos tempo para o circo. Um sinal destas supostas inevitabilidades é dado pelos próprios circos que param cada vez menos tempo nos locais por onde ainda vão passando em digressão. Qualquer dia deixarão de erguer aquelas tendas habituais e as próprias tendas deixarão de ser quentes no Inverno e frescas no Verão. Pior ainda, qualquer dia os espectáculos deixarão de ter espectadores e não haverá homem bala, por mais incrível que seja, que nos prenda a atenção. Talvez regressemos às representações pobres de rua, em dias de feira, com menores transformados em contorcionistas e macaquinhos amestrados a anteceder uma história de robertos contada num palco imaginário que um pano muito sujo tapa para esconder quem manipula os bonecos.

As mudanças necessárias

Paris 2012 / Foto JR

O chalet Madalena em Cascais (mais tarde Pensão Boaventura) é um imóvel típico da arquitetura de veraneio dos finais do século XIX recentemente reabilitado para acolher um Conservatório de Música. Esta reabilitação transformou uma construção sem grande relevância arquitetónica e várias vezes degradada ao longo de décadas num edifício moderno para fruição cultural sem beliscar a alma da antiga Pensão Boaventura, cheia de memórias de muitos que nela encontraram abrigo temporário quando fugiam da Europa em guerra para a América. As mudanças necessárias são as que acrescentam algo de novo sem negar o que vale a pena manter do velho.

Tristeza não poder fazer greve

Amadeo Souza Cardoso / Foto Fundação C. Gulbenkian

O país parou. Não parou totalmente mas muitos dos que foram trabalhar neste dia de Greve Geral fizeram-no com a imensa tristeza de quem queria fazer greve mas não tinha condições objetivas para a fazer. Alguns temiam represálias, naturalmente indiretas e impossíveis de comprovar, outros pura e simplesmente não têm condições para deixar de ganhar o pouco que ganham num dia de trabalho. Hoje, muitos portugueses viveram um dos dias de maior tristeza que temos de sofrer pela circunstância de vivermos aqui e agora.

A moda da bandeirinha na lapela

Colagem de Júlio Roldão 2012

A moda da bandeirinha nacional na lapela veio para ficar. Surgiu ou tornou-se mais visível nos Estados Unidos da América, na reação ao 11 de Setembro, mas os americanos rapidamente conseguiram exportá-la para muitos países. Nós, por cá, tivemos um surto de patrioteirismo de lapela por altura do Euro 2004. Nesse ano foi na lapela, na janela, nos carros, nos autocarros, nas capas dos jornais e em muitos outros locais... Bandeiras por todo o lado e quem não as mostrasse vivia seguramente em pecado. A moda, agora, ainda resiste mas de forma mais elitista e discreta ou, dito de outra maneira, só persiste naqueles que estão protegidos da austeridade.

D. Angela prometeu voltar de férias

Fundação Ricardo Espírito Santo 2012 / Foto JR

Lisboa preparou-se a rigor para a receber. Não fazemos por menos. D. Angela esteve no Palácio de Belém com o presidente da República e no Centro Cultural de Belém com empresários alemães e portugueses, onde disse que as empresas portuguesas podem ajudar muito as empresas alemãs a penetrar noutras economias que Portugal conhece bem. No espaço lusófono, deduz-se. Estaria talvez a pensar em Angola e no Brasil. Pelo meio almoçou no Forte de S. Julião da Barra com o primeiro-ministro, entre outros. O Forte de S. Julião da Barra foi o local onde Salazar caiu a cadeira,

Guimarães em dia de S. Martinho

Colagem de Júlio Roldão 2012

Sem pretender cumprir  a prova de vinhos própria do Dia de S. Martinho, descobri um Douro que se revela numa relação preço qualidade muito boa. Foi em Guimarães, na Rua da Rainha, num Restaurante que se autodenomina de novo, em pleno centro histórico onde não desdenharia experimentar uma residência literária que é um dos sonhos que persigo há muito. Voltando à Reserva do Douro (CARM), registo a elegância do rótulo que, como sempre faço quando o vinho me agrada, reutilizei numa colagem no meu Moleskine destinado a estes recortes.

Viver acima das possibilidades

Num cinema do Porto 2010 / Foto JR

À hora do jantar, fico preso na televisão da cozinha a ver o programa Rede Social (RTP 1, se a memória não falha). Debate-se a diminuição estatística do número de divórcios e o aumento de casos de casais divorciados que continuam a partilhar a casa do casal pela impossibilidade que ambos terão em aguentar as despesas de uma habitação própria, como naturalmente desejariam. A meio, alguém localiza o fenómeno num outro contexto temporal referindo-se ao tempo em que nós, portugueses, "vivíamos acima das nossas possibilidades". Não sei que tempo foi esse e até duvido que realmente tenha existido, entre nós, um tempo assim, como ouço vezes demais. O que lamento é que uma tal ideia vá passando e vá sendo dada como adquirida, sem discussão, num debate como o da Rede Social de hoje.

Ghostwriter? Escritor particular

Bordeaux, Abril de 2010 / Foto ND

"Avalia-se um homem pela natureza dos factos que o aborrecem". Esta frase estava escrita numa parede da sala de ensaios do Teatros dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) quando o grupo, no início dos anos 70, ensaiava em instalações provisórias dos "Gerais", o primeiro edifício da Universidade onde também estava instalada a Faculdade de Direito. Foi lá que eu me inscrevi no TEUC, em Novembro de 1971. Estou tentado a escrever uma narrativa ficcionada sobre esses anos, que comece precisamente nesse dia de Novembro. Para não ser ghostwriter a tempo inteiro.

Bom dia Amazonas, eu sou Luuanda

Aguarela de Júlio Roldão, Luanda 2010

Há dias, mais precisamente no passado dia 3 de Outubro, na Sala 2 da Casa da Música, no Porto, fui levado para o Amazonas pelo percussionista Naná de Vasconcelos. Nem Lui Coimbra, que também participou no espectáculo, enfrentou uma chuva assim, a cair no rio. Quente como todas as chuvas tropicais e tudo isto só com vozes e a bater palmas.

A noite abriu com um berimbau inesquecível que, só por si, valeu o dia inteiro e valeu a própria noite. Um berimbau como aquele que acompanha Vinicius. "Quem de dentro de si não sai // Vai morrer sem amar ninguém". Há momentos, tão bons, que deviam prolongar-se para sempre e pessoas, tão boas, que deviam ser eternas. (...)

O melhor está para vir, diz Obama

colagem de Júlio Roldão

Na intervenção de vitória na eleição para o segundo mandado, Barack Obama fez questão de referir, para os milhares de apoiantes que o ouviam em Chicago, que o melhor ainda está para vir. Que contraste com as mensagens dos políticos europeus que falam sempre no pior que ainda não chegou.

Nenhum Homem é Estrangeiro

Boston, Novembro de 2009 / Foto JR

Na minha ainda única viagem aos Estados Unidos da América, em Novembro de 2009, experimentei uma alegria quase infantil, quando vi, pela primeira vez sem ser em filmes, aqueles autocarros amarelos do transporte escolar que também são, aos olhos dos estrangeiros, um símbolo dessa jovem e fascinante nação. Foi um novo pretexto para reler as memórias jornalísticas de Joseph North, publicadas sob o significativo título No Men Are Strangers, em Português Nenhum Homem é Estrangeiro.